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Três perguntas a um Psicólogo

AUTORA
Tânia Ramos
UX researcher na OutSystems,
Investigadora do Centro de Investigação em Ciência Psicológica da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa

“Três perguntas a um Psicólogo” é uma série de entrevistas a Psicólogos que trabalham em diversas áreas. As três primeiras perguntas foram realizadas a Leonel Garcia-Marques (Professor Catedrático e Investigador na Universidade de Lisboa). Em resposta às perguntas, o Leonel falou-nos sobre os comportamentos e decisões das pessoas, no momento atual da crise do COVID-19. A conversa foi muito além da Psicologia, e cruzou outros campos de conhecimento, como a Economia, a Sociologia e a Política. O resultado é uma visão pessoal e abrangente do comportamento humano, face à corrente crise pandémica, e não só.

Leonel Garcia-Marques é Professor Catedrático na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. A sua investigação foca-se nos temas da memória, formação de impressões, estereótipos, julgamento e tomada de decisão. Foi Editor principal do European Journal of Social Psychology. Publicou mais de 100 artigos cientificos, incluindo nos mais prestigiosos jornais de Psicologia Social e Cognitiva. Recebeu, ao longo da sua carreira, vários prémios científicos e é também conhecido pelas suas colaborações com Departamentos de Investigação em Psicologia de topo ao nível mundial, incluindo UCSB, Harvard, NYU, entre vários outros.

Pergunta 1

Tânia: Uma das suas áreas de investigação é a tomada de decisão em condições de incerteza. É difícil imaginar um momento de tanta incerteza como o que vivemos hoje em dia, no mundo inteiro. Existem alguns ensinamentos dessa investigação que nos ajudem a compreender o comportamento que observamos atualmente nas pessoas, face à pandemia do coronavírus?

Leonel Garcia-Marques: Há pelo menos uma coisa que é muito evidente e que até é um caso interessante para no futuro se dar como exemplo. Já na Cognição Social, aliás no livro clássico do Nisbett e Ross, fazem uma citação do Estaline em que ele diz que: “morrer um milhão de soldados é um dado estatístico, morrer um soldado é uma tragédia”. Portanto, tipicamente as pessoas dão muito mais importância aos dados individuais do que à informação do ponto de vista estatístico. Isto é fantástico, porque nesta altura estamos a ter todos os dias informação estatística (pode não estar muito atualizada, mas pelo menos é sempre comparável com o dia anterior) e há dados que são indiscutíveis. Por exemplo, se virmos o número de mortos até hoje, não existem praticamente dados de fatalidades abaixo dos 30-40 anos. A maior parte das fatalidades é acima dos 70-80 anos. Sabemos que a incidência entre os jovens é mínima mas, no entanto, se formos ver os dados recentes de um inquérito da Universidade Católica, 80% das pessoas acham que isto afecta igualmente, e que é muito perigoso, para todas as idades.

E, na televisão, por exemplo, outro dia apareceu um caso de um bebé que tinha morrido (não foi em Portugal). Ou seja, um único caso específico, que pode valer muito para as pessoas, pode ser um caso com muito significado emocional, mas que em termos estatísticos não vale absolutamente nada porque infelizmente morrem bébés todos os dias e isso é uma realidade, sem ser por COVID-19. Uma verdadeira tragédia é morrerem milhares de pessoas a nível mundial. Portanto, nós temos esta tendência de valorizar imenso esses casos, porque são os casos que mais facilmente nos lembramos, normalmente são excepcionais portanto têm um impacto emocional muito grande, são contados com imensos pormenores que dão grande vivacidade. E, por isso, quando nós estamos a pensar no assunto, esses casos afectam de forma desproporcional o nosso pensamento a esse respeito.

E, realmente, mesmo neste momento em que estamos a ter informação estatística, todos os dias, atualizada, de uma forma descritiva e profunda, as pessoas continuam a seguir com os casos que são dados na televisão. E quais são os casos que são dados na televisão? As excepões. É o idoso de cento e tal anos que sobreviveu, é o bebê que morre, é o atleta que morre. Portanto, as pessoas têm uma noção completamente errada acerca da incidência e da mortalidade da doença a nível de faixas etárias, por causa disto. Isto acontece assim, já sabíamos que isto era assim. Mas talvez nunca se tenha visto tão abertamente um exemplo destes. Por uma razão muito simples: habitualmente, as estatísticas não são fáceis de encontrar. E pode-se dizer que as notícias nos jornais são. Mas agora as duas coisas são igualmente fáceis de encontrar. É muito fácil ter acesso a estas estatísticas.

Outra coisa relativamente às situações de incerteza, e que é um fenômeno interessantíssimo, que tem que ver com a Psicologia, a Economia e com a própria Psicologia Animal. E vale a pena distinguir entre situações de incerteza e de risco – risco é a pessoa tomar uma decisão ou escolher uma alternativa e não saber qual é o resultado que vai obter, mas sabe qual é a probabilidade de obter cada um desses resultados. Isso chama-se risco ou decidir com uma componente de risco. Incerteza é quando se sabe que existem várias alternativas, mas não se sabe quais são as probabilidades dessas alternativas.

As situações de incerteza são situações onde tipicamente é muito difícil utilizar teorias da decisão, visto que não há possibilidade de fazer uma estimativa de probabilidade. Curiosamente, o que o Keynes dizia é que, nesse caso, em que os decisores económicos estão numa situação de incerteza, instaura-se aquilo que ele chamava os “espíritos animais”. E o que é que os animais fazem? Comportam-se como uma manada. Vêm o comportamento dos outros como pista para a coisa adequada que eles devem fazer. E é fácil imaginar as consequências que isso tem. Uma pessoa vai ao banco levantar dinheiro e olha “aquele foi” e lá vão todos ao banco levantar dinheiro. As pessoas deixam de investir e deixam todas de investir. As pessoas vão comprar aquilo, e todos compram aquilo.

Portanto, estes são os “espíritos animais” (uma expressão muito célebre do Keynes), e muitas vezes dá origem a uma coisa que em Sociologia se chama as profecias auto-confirmatórias. Ou seja, as pessoas por terem medo que os bancos vão a falência, vão levantar dinheiro, e portanto como vão levantar dinheiro, claro que os bancos vão à falência. E estamos agora a assistir a tudo isso, ao espírito dos animais. Um dos fenómenos mais interessantes é o do papel higiénico, ou seja, houve aí um momento em que as pessoas endoidaram na busca de papel higiênico. E eu, por acaso, falei com uma pessoa no supermercado e perguntei: “Mas por que é que as pessoas estão a comprar papel higiênico assim?” e ela respondeu “Eu também não sei, mas acho que é para fazer máscaras” (risos).

Portanto, as pessoas seguem o comportamento uns dos outros, isso às vezes é muito adequado porque uma pessoa pode dedicar o seu tempo a outra coisa e usar o comportamento dos outros como pista. Por exemplo, quando andava nos transportes públicos, eu estava à espera do metro sentado a ler e eu nunca olhava para o metro, levantava-me quando as outras pessoas se mexiam. Podia estar muito concentrado a ler e usar o comportamento dos outros como pista. Isto, muitas vezes, é uma heurística e dá resultado. Em situações de incerteza tem um efeito amplificador, ou seja, em situações de incerteza é tipicamente amplificada a tendência para tomarmos como adequado o comportamento do outro, que também está a tomar outro comportamento de outro como adequado.

É interessante que a nível animal acontece a mesma coisa. Ou seja, há muitas espécies sociais, por exemplo, de peixes que, se houver um predador, os peixes funcionam como se estivessem numa espécie de manada. Cada um começa a copiar o comportamento do outro. Ficam muito próximos e movem-se em uníssono. Em princípio, isto é bom porque dificulta a função ao predador, mas é extremamente curioso. Dá a sensação que nós nos comportamos exactamente como esses peixinhos e que, em situações de perigo, copiamos o comportamento uns dos outros. Isto passa-se com estas acções de compras de papel higiênico, esgotamento das máscaras, do gel, etc. São coisas muito semelhantes e é uma resposta do comportamento em condições de incerteza.

Já ouvi uma teoria interessante sobre “mas porquê papel higiénico?”. Realmente é uma questão muito interessante: “porquê papel higiênico?”. E a teoria mais interessante que eu ouvi é que o papel higiênico se vende em grandes porções e portanto ocupa muito espaço nas prateleiras dos supermercados e quando falta dá muito nas vistas. Enquanto, por exemplo, se faltarem pastas de dentes, o espaço que ocupa no supermercado não é muito grande, o papel higiênico nota-se logo que falta. Como se nota que falta, as pessoas acham que vai faltar. Acham que têm que comprar o mais depressa possível, pedir a um amigo, tentar arranjar uma cunha, compram até porque pensam na mãe (risos). E a seguir, falta mesmo.

Pergunta 2

Tânia: Ao mesmo tempo que assistimos a alguns comportamentos talvez menos racionais (como pessoas a comprar bens não essenciais ou que compram em excesso levando ao esgotamento de stock para outras pessoas que poderiam precisar), assistimos ao mesmo tempo a grandes movimentos de empatia e altruísmo. Como explicar, de um ponto de vista psicológico, estes dois tipos de comportamento algo contraditórios: por um lado comportamentos aparentemente egoístas e individualistas e, por outro lado, comportamentos de entreajuda e enorme solidariedade? Ou seja, movimentos de cooperação e de competição podem co-existir?

Leonel Garcia-Marques : Há uma grande relação entre duas coisas que são aparentemente contraditórias: um grande altruísmo e um grande egoismo, digamos assim, ou pelo menos uma rejeição dos outros. Isso acontece normalmente em situações de conflito. Ou seja, quando estamos em conflito com outros, tendemos a desumanizar os outros, e tendemos ao mesmo tempo a ser altamente altruístas para o nosso próprio grupo.

Isto começou rapidamente a aparecer aqui em Portugal. Ou seja, por exemplo, o caso dos chineses. O vírus supostamente foi originado na China e portanto o que começou a acontecer logo aqui foi as pessoas deixarem de ir aos restaurantes chineses, às lojas de chineses, etc. Eles reagiram até muito bem e impuseram-se a si próprios quarentena. A Directora Geral de Saúde foi a um supermercado chinês, antes de isto começar a sério, para dar o exemplo. Nos EUA aconteceu a mesma coisa, a Nancy Pelosi foi a Chinatown de Los Angeles mas ontem o Trump dizia: “há políticos que não fazem a mínima ideia o que estão a fazer, enquanto eu estava a proibir os chineses de virem para cá, ela estava em festas em Chinatown!”. Como se fosse a mesma coisa. Os chineses de Chinatown são provavelmente americanos, não tem a ver com eles. Não é por eles terem atributos físicos chineses que quer dizer que tenham o vírus. Isso é um raciocínio tão primário. De qualquer maneira, são estes dois tipos de estratégias, o que o Trump faz é aquela estratégia que é “nós contra eles”, contra a China, a Organização Mundial da Saúde, etc.

Felizmente aqui em Portugal o nosso apelo é um apelo que tem que ver com a célebre investigação do casal Sherif. O Musafer Sherif e a Carolyn Sherif organizaram um campo de férias para crianças e fizeram dois grupos com essas crianças. Deram nomes diferentes aos grupos e deixaram que eles se organizassem à parte um do outro. Os dois grupos rapidamente começaram em competição, a roubar coisas uns dos outros, houve agressões, etc. Eles estavam a estudar o desenvolvimento do conflito e verificaram que bastou haver dois grupos para isso começar a acontecer. A maneira como eles dissiparam todo o conflito foi criando atividades supra ordenadas, ou seja, criaram objectivos comuns. Por exemplo, iam ao cinema e o autocarro supostamente ficou preso na lama e só se os dois grupos colaborassem é que podiam libertar o autocarro e podiam ir todos ao cinema. Com isso, os grupos conseguiram criar uma atividade supra ordenada onde se incluíam os dois porque tinham objetivos comuns e, com isso conseguiram resolver o conflito. O que se está a passar em Portugal é muito semelhante. Somos todos juntos contra o vírus, é essa a ideia. Estamos todos exactamente no mesmo barco. A nossa posição já foi elogiada porque está a ter um espírito extremamente positivo e produtivo. Nesse caso, o nosso mal é um mal não humano e, nesse aspecto, é melhor,  somos “todos contra o vírus”.

De qualquer maneira, muitas vezes, há coisas que podem parecer egoísmo e que não são necessariamente egoísmo. Pode haver uma explicação um bocadinho mais sofisticada. Por exemplo, há o caso célebre da Kitty Genovese, uma mulher que foi assassinada em Nova York. Ela foi esfaqueada 17 vezes pelo assassino e isso demorou muito tempo, uns 20 minutos. E quando a polícia foi recolher testemunhos percebeu que estavam dezenas de pessoas a ouvir e ninguém telefonou à polícia. Isso foi considerado o pior que se pode imaginar, o egoísmo, etc. Mas o que é curioso é que, pondo isto em termos da teoria dos jogos, existe um ganho que é o da Kitty Genovese ser salva e existe um custo de eu levantar-me do sofá, telefonar à polícia, propor-me para servir de testemunha, ter que ir a tribunal, etc. Vamos supor que eu sou altruísta e que para mim é mais importante que a Kitty Genovese se salve do que eu me chatear e ir testemunhar a tribunal – sou uma pessoa altruísta. Mas não sou parvo, mesmo assim eu prefiro que ela seja salva e que eu não telefone. Ora, se eu vejo que há muitas outras pessoas a ver a mesma coisa, quanto mais pessoas eu vejo que estão a ser testemunhas, mais provável é que uma delas telefone e, portanto, mais racional é que eu não telefone (apesar de, se eu soubesse que ninguém telefonava, de certeza ia eu salvá-la).

Isto em grande medida tem que ver com a interpretação da situação, muitas vezes as situações de emergência são ambíguas e as pessoas interpretam a situação pelo comportamento dos outros (como falámos anteriormente) e portanto não fazer nada, na prática, é uma forma de induzir os outros a não fazer nada, porque leva os outros a interpretar a situação como não sendo de emergência. E, em segundo lugar, há difusão da responsabilidade, no sentido em que quanto mais pessoas podem intervir, menos provável é que algum deles intervenha.

Portanto, resumindo, muitas vezes apesar de nós até sermos basicamente cooperantes. O Herbert Simon dizia que nós somos cooperantes até de uma forma irracional. Ele tinha a teoria da “docilidade”, dizia que nós somos excessivamente dóceis. Porque como aprendemos e fomos  reforçados que a cooperação leva a bons resultados, tomamos isso por vezes sem medir as consequências. Somos propensos à cooperação, mesmo por vezes contra o nosso próprio interesse. Só que o que se entende por cooperação, o que se entende sobre o que é o comportamento adequado, depende de uma interpretação e as situações nem sempre são fáceis, há sempre vários pontos de vista, várias perspectivas. O Lee Ross antes dizia que o erro atribucional fundamental era nós ignorarmos as condições em que comportamento ocorre e considerar que o comportamento de uma pessoa se devia só às características intrínsecas da pessoa. Ele hoje reviu a noção de erro fundamental. Agora, para ele, o verdadeiro erro fundamental é o desconhecimento que existem várias perspectivas de ver a mesma coisa. Quando nós ignoramos isso, achamos que as coisas são “assim”, daquela maneira específica. E o nosso comportamento é completamente justificado. Qual é o problema disso? É que tipicamente, mesmo quando pensamos no nosso interesse, os nossos comportamentos têm uma justificação plausível, que não é egoísta. Muitas vezes a justificação é: “este mundo é uma selva, os outros estão a fazer exactamente a mesma coisa” ou “eu por mim não fazia, mas os outros fazem então eu tenho que fazer”.

Resumindo, às vezes as pessoas são más ou egoístas por uma questão de interpretação da situação. E por dificuldades de coordenação no estabelecimento da cooperação. Muitas vezes isso acontece. Agora, quando existem conflitos intergrupo, o altruísmo, o auto-sacrifício e o humanismo face ao meu grupo são quase a outra moeda do conflito, da agressividade e do egoísmo face ao grupo do outro. Uma maneira de resolver isto é muito semelhante a esta abordagem que estamos a ter aqui em Portugal e que está a ter um certo resultado.

Mas vamos ver, porque depois vai ser muito fácil alguém recapitalizar isto, porque é uma identidade muito vasta, é uma identidade que durante algum tempo pode esconder as diferenças entre nós, mas depois é muito fácil recapitalizar essas diferenças. E há pessoas que estão nitidamente preparadas para isso. Por exemplo, a segunda vaga do COVID-19 é uma quase necessidade estatística, basta ver como é o desenvolvimento das curvas epidémicas quase sempre com um parâmetro cíclico (sinovial) com a forma de um S deitado. Portanto ela vai voltar, não há dúvida absolutamente nenhuma. O pico pode ser menos alto, mas quanto mais êxito nós tivermos agora, mais grave vai ser a segunda vaga. Porque ao adiarmos o contacto e ao manter uma taxa de infecção da população muito baixa, mais recursos estamos a dar ao vírus para a segunda vaga. Nós podemos ser vítimas do nosso próprio êxito. Um país, por exemplo, como a Suécia, não está a ter êxito nenhum, mas provavelmente vai ter uma segunda vaga muito menos agressiva, se não houver vacinação até lá. E isso pode vir a despertar em Portugal aquelas opiniões que por enquanto então ocultas e vão depois dizer: “se isto tivesse sido bem feito não haveria segunda vaga”. Infelizmente isto não vai continuar assim, porque é do interesse de certas pessoas que vivem do conflito. É do seu interesse criar o medo, o conflito e a desconfiança. Por enquanto, estamos todos bastante unidos, mas essas pessoas vêm aí, e o conflito também.

Pergunta 3

Tânia: Sabemos da investigação em Psicologia Cognitiva que, muitas vezes, as pessoas avaliam os riscos com base em sentimentos (heurística do afecto). Em alguns cenários, uma carga afectiva elevada pode levar a uma negligência das probabilidades reais e a uma sobrestimação do risco. No entanto, no cenário atual, de grande incerteza e no qual nenhum momento histórico anterior pode ser usado com segurança para fazer previsões sobre o presente, podemos dizer que a heurística do afeto nos serve melhor do que estratégias mais complexas e otimizadoras? Como diz o Gigerenzer, será este um caso onde as heurísticas são ecologicamente adaptativas?

LEONEL GARCIA-MARQUES: Há uma heurística, que é a chamada heurística do afeto ou da emoção, em que as pessoas, em vez de usarem a estimação da probabilidade das consequências de cada acção, utilizam a maneira como se sentem quando estão a pensar na consequências dessa acção. E isso é uma heurística, lá está, no sentido em que ela é útil. Se eu pensar numa coisa, se eu a imaginar, e ela me fizer sentir mal, evidentemente que eu devo pensar com muito cuidado se devo continuar por aí. A própria ideia de existirem marcadores somáticos que nos dizem se estamos a arriscar demasiado ou não. São ideias que fazem todo o sentido. E, portanto, esta ideia que as decisões não se podem basear nos afectos e nas emoções não faz sentido.

Há uma distinção muito importante que o Bodenhausen faz entre “afeto integral” e “afeto incidental”. O afecto integral é exactamente o exemplo que eu estava a dar: eu estou a pensar em consequências, essas consequências fazem-se sentir alguma coisa e portanto esses sentimentos que eu tenho são altamente diagnósticos de eu dever correr o risco e dessa coisa que eu estou a imaginar acontecer, ou não. Pelo contrário, o afecto incidental é quando eu, por acaso, me estou a sentir bem e quando me perguntam: “então amanhã queres ir beber um copo?”. E eu, na altura, estou a sentir-me tão bem que isso também me parece maravilhosamente bem. O afecto aqui não vem da proposta em si, vem de eu estar a sentir-me bem anteriormente. E, portanto, quando o afecto é incidental basearmo-nos no afecto é absolutamente desajustado e desadequado, tal como basearmo-nos, aliás, em qualquer outra coisa que não tem a ver com a decisão, seja o que for. Se há ideias e termos de comparação que são irrelevantes e se nós os utilizarmos, claro que isso vai afectar negativamente a nossa decisão também.

Ora, num estado de constante pânico e de medo, estarmos a imaginar qualquer coisa leva-nos, ou deve-nos levar, à paralisia. Deve-nos levar exactamente a não fazer nada, a evitar a acção, digamos assim. No entanto, o problema disto é que as pessoas habitualmente se arrependem mais da omissão do que da acção. Ou seja, as pessoas arrependem-se mais de deixarem de fazer coisas do que de fazerem. Por exemplo, neste momento uma pessoa que tenha um comportamento altruísta e que vá ajudar alguém é altamente provável que se arrependa muito menos do que aquela pessoa que o pensou fazer e não o fez. A pessoa que pensou fazer e não fez, essa pessoa vai provavelmente arrepender-se mais, mesmo que a outra tenha alguns problemas e tenha algumas dificuldades.

Mas, neste caso, o que acontece é que é muito fácil instaurar o medo, mas é muito difícil voltar atrás. E, portanto, eu acho que o que nós vamos ver agora, nestas tentativas de transição, é uma dificuldade imensa em voltar atrás. E, muitas vezes, medos sem grande razão de ser. Eu aposto que os pais das crianças mais jovens vão ter imenso medo, e não é medo do género “coitados dos professores que são mais velhos e podem apanhar”, não, é medo pelos próprios filhos. Mas, claro, para meter medo às pessoas foi importante dizer que afetava todos, dar exemplos de casos excepcionais, isso para meter medo é ótimo – apesar de ser mentira e ser informação desadequada. Mas agora o problema é voltar atrás. O medo é um sentimento que tem um custo social terrível, é um destruidor de relações, de sociedades e de democracias. O medo e a desconfiança têm um custo social elevadíssimo. E portanto, mesmo que seja por uma doença, mesmo que seja por boas razões, é uma brincadeira muito, muito arriscada instalar medo numa população, na minha opinião.

Neste momento devemos tentar lembrarmo-nos de como é que era estar lá fora, de como era bom abraçar as pessoas, etc. E tentar voltar a sentir esses sentimentos outra vez, ao em vez de estar a utilizar o sentimento de medo atual para projetar como é que será estar com os outros lá fora.

Tânia: Porque o medo afeta efectivamente a capacidade das pessoas pensarem claramente e processarem informação… 

Leonel Garcia-Marques: Nós estamos numa situação de escassez de recursos e há investigadores, como por exemplo o Eldar Shafir, que estudou as consequências psicológicas da escassez de recursos. Ele estava a estudar isso mais por causa das desigualdades sociais, mas neste momento nós estamos todos a ser afectados. Estamos todos numa situação de escassez de recursos cognitivos, por vários motivos.  O que o Shafir viu é que, para além dos problemas económicos e de discriminação social que as pessoas  de posições sociais mais baixas sofrem, elas também têm maior escassez de recursos. Isso faz com que as pessoas tipicamente tomem piores decisões e só consigam pensar a curto prazo, e não a longo prazo.

E eu acho que neste momento isto é terrível. As pessoas só são capazes de pensar a curto prazo. A letalidade deste vírus é maior que a da gripe, mas é uma letalidade razoável, enfim, podem-se tomar precauções e minimizar. Mas as consequências alternativas de não sair, ficar em casa, etc, isso também pode ter consequências terríveis a nível económico e social. Mas as pessoas têm muita dificuldade em pensar nisso porque, lá está, estão numa situação de escassez e só conseguem funcionar a curto prazo. Só pensam: “e se o meu filho apanha” e não pensam a longo prazo o que lhes pode acontecer a eles se a economia não funcionar.

Além disso, se virmos a taxa homóloga de morte do mês de Março em comparação com o ano passado, morreram muito mais pessoas este ano (mesmo retirando o número que morre por COVID-19), o que significa que as pessoas não estão a ir aos hospitais, não estão a ir às urgências, os pais não estão a vacinar os filhos, os doentes cardíacos não estão a ir às consultas e a fazer análises. Ou seja, lá está, este tipo de coisas funciona a curto prazo, mas está a ter consequências já terríveis. E, portanto é como se tivéssemos a poupar vidas, de um lado, mas estamos a gastá-las do outro. Não estamos a perdê-las a curto prazo, mas estamos a perdê-las a longo prazo.

E, neste momento as televisões, rádios e jornais precisam de muitas pessoas para comentar, mas não há tantos especialistas assim. E depois vão perguntar a pessoas quaisquer, que não são de todo especialistas. E claro que a população diz: “Ah, nem os cientistas se entendem”. A excepção são certos cientistas, que imagino que sejam inúteis para os políticos, mas a quem eu tiro o chapéu, porque quando lhes perguntam: “diga-me lá como está a situação”, eles respondem “Não faço a minima ideia, os dados ainda não estão estáveis, temos poucos dados…” (risos). Claro que isto para os políticos e para muitos jornalistas não serve, eles querem é os outros, os que nunca têm dúvidas.

Data da entrevista: 16 de Abril, 2020 / Data de publicação: 1 de Maio, 2020  https://essentiallypsychology.com/