A Psicologia Social – Entrevista com o Professor Doutor Leonel Garcia Marques
O Futuro da Ciência Psicológica Básica

Entrevista realizada pelo DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA BÁSICA | Newsletter Novembro 2019 (Universidade do Minho – Escola de Psicologia)

Prof. Leonel Garcia Marques licenciou-se em psicologia pela Universidade de Lisboa e doutorou-se sob a supervisão de David L. Hamilton da Universidade de Califórnia em Santa Bárbara. Atualmente é Professor Catedrático, Presidente do Conselho Científico e Coordenador Principal do CICPSI na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Investiga atualmente nos domínios das interações entre memória e uma série de outros temas como aprendizagem, formação de impressões, estereótipos e processos de grupo. Tem desempenhado funções de Diretor e/ou Diretor Associado de importantes revistas como o European Journal of Social Psychology ou do Personality and Social Psychology Bulletin.

Como vês a evolução da investigação em psicologia
social ao longo das últimas décadas em Portugal?

Começando por definir o que é a Psicologia Social, poderia dizer, parafraseando a definição clássica de Gordon Allport, que é a disciplina da ciência psicológica que visa compreender como o comportamento, motivações, pensamentos e sentimentos dos indivíduos são influenciados por outras pessoas, reais ou imaginárias. É uma disciplina com aplicações que vão da economia, ciência política e marketing e até à saúde, meio ambiente e educação. Desde a sua fundação que a Psicologia Social se dedicou a questões prementes da sociedade, como conflito, psicologia dos pequenos grupos e das multidões, racismo, preconceito, perceções de injustiça, de desigualdade, etc.

Essas características fizeram com que a Psicologia Social, como tantos saberes sociais, fosse mal-amada pelo Estado Novo. Assim, a grande evolução da investigação em Psicologia Social deu-se no período subsequente ao 25 de Abril. Mais propriamente, em 1980 realizou-se em Lisboa o Simpósio “Mudança e Psicologia Social” e foi partir daí que se iniciaram os primeiros contactos com a Associação Europeia de Psicologia Social Experimental. E foi em meados dos anos 80 que começaram a chegar a Portugal, a primeira geração de Psicólogos Sociais formados na Europa (sobretudo na Universidade de Lovaina na Bélgica).

Na década seguinte aconteceram bastantes coisas importantes para Psicologia Social em Portugal: começou o grande impulso estatal à investigação a partir do contributo assinalável de Mariano Gago, foi publicado a 1ª edição do Manual de Psicologia Social (hoje na 11ª edição) com a Direção de Jorge Vala e Maria Benedita Monteiro e que reuniu à sua volta a comunidade de investigadores portugueses
em Psicologia Social, foi criado o primeiro programa pós-graduado em Psicologia Social e das Organizações no ISCTE (e com a participação de investigadores de outras instituições sobretudo de Lisboa) e começou a formar-se uma leva de psicólogos sociais formados total ou parcialmente nos EUA (donde destaco, talvez por enviesamento, a Universidade da Califórnia, Santa Barbara).

Foi nesta sequência de grande internacionalização da investigação em Psicologia Social, que investigadores portugueses foram incluídos na
direção da Associação Europeia, nomeados como Editores Principal e Associados da sua publicação principal, o European Journal of Social Psychology e a participarem ativamente em inúmeros projetos internacionais, destacando-se a European Social Cognition Network 1 e 2, programas financiados pela ESF.

Mais recentemente, para além da existência de Programa Pós-Graduados em várias universidades e institutos do país e do aumento exponencial da investigação, abrangendo temas tão diversos como estereótipos e preconceito, perceção de pessoas e grupos, neuro-cognição social, comparação social e injustiça, emoções, sentimentos cognitivos julgamento e decisões, representações sociais, identidade e mudança social e aplicações a áreas tão diversas como a Saúde ou o Ambiente. Este aumento refletiu-se também no número de projetos financiados e nas publicações internacionais oriundos da investigação em Psicologia Social, é de destacar um programa pós-graduado invulgar no nosso país, o LISP.

O LISP é um programa de doutoramento em Psicologia Social de Lisboa (LiSP) é um programa de interuniversitário financiado pela FCT que integra três programas de doutoramento previamente existentes em Psicologia Social em Lisboa, o do ISCTE-IUL, o da Universidade de Lisboa (Faculdade de Psicologia com a colaboração do Instituto de Ciências Sociais) e ISPA – Instituto Universitário. O LISP combina a experiência académica e a pesquisa de alguns dos mais reputados investigadores em psicologia social do país, os recursos disponíveis e outras sinergias desenvolvidas entre as instituições envolvidas. Ao reunir os ramos da Psicologia Social dos três programas de doutoramento em Psicologia de Lisboa, este programa oferece uma combinação única de diversos subdomínios científicos num programa integrado. Mais: a formação de cada estudante é complementada com um período de estadia num laboratório estrangeiro com a co-orientação de um investigador de mérito reconhecido.

A primeira fornada de estudantes está agora a doutorar-se. Espero grandes coisas destes estudantes e da continuação da nossa colaboração.

O que mudou no ensino da psicologia social como
resultado desta evolução?

Em minha opinião, as principais mudanças são duas: o aumento da oferta especializada em programas graduados de investigação em Psicologia Social e a inclusão dos estudantes do primeiro e segundo ciclos nos trabalhos de investigação que decorrem nos vários centros, aprendendo, desde muito cedo a tirar partido dos recursos de hard e software, hoje em dia, indispensáveis na investigação.

O aumento da oferta pós-graduada permite a formação de novas gerações de investigadores e docentes com uma maior especialização e, no seu conjunto, uma maior abrangência de temas de investigação, sejam esses temas clássicos sejam inovadores. E esse aumento permite algo até aqui, muito ausente no nosso país, uma massa crítica suficiente de investigadores em cada área, de molde a permitir a crítica mais especializada e a colaboração mais profícua.

A inclusão precoce dos estudantes do primeiro e segundo ciclos nos trabalhos de investigação permite aos estudantes darem-se conta, mais cedo, da natureza da investigação e dos conhecimentos e dos princípios éticos que têm de fazer parte do reportório e da consciência moral de um investigador. Tal beneficia a formação dos futuros investigadores, mas também contribui para um melhor entendimento dos processos de investigação em Psicologia Social (e da investigação em geral), mas também para a formação de um maior sentido crítico e para uma melhor compreensão dos seus resultados e avanços, o que potencializará a aplicação do saber em qualquer que seja a área de intervenção dos futuros psicólogos e a sua auto-atualização ao longo da carreira.

Outra mudança na forma de ensinar a disciplina em Portugal prende-se com a grande internacionalização da investigação em Psicologia Social que permite que os estudantes beneficiem muito da interação com outros estudantes estrangeiros, aqui ou em laboratórios estrangeiros, e dos ensinamentos e orientação de investigadores da Europa e dos EUA.

De notar, que esta evolução acarreta novas e grandes exigências sobre os docentes porque para além de pedagogos têm naturalmente têm de se constituir como investigadores ativos. Essas exigências são muitas vezes difíceis de satisfazer dada a grande carga letiva e pior, de burocracia que penaliza os académicos portugueses.

Quais a principais oportunidades e ameaças que antevês para a investigação e
ensino da psicologia social no futuro?

Muitas vezes as ameaças não são mais do que oportunidades desperdiçadas e oportunidades resultam de ameaças bem ultrapassadas. Para mim, as principais ameaças são também as maiores oportunidades: as modas e a interdisciplinaridade. De facto, psicologia tende a ser suscetível a modas e cada Zeitgeists favorece determinadas áreas (em interesse público e curiosamente, na capacidade de atrair os melhores estudantes e no financiamento público) e leva ao esquecimento e à negligência de outras (por exemplo nas áreas de investigação dos concursos de investigação da FCT, desapareceu a Psicologia Social, restando apenas a Cognição Social).

Mais, a combinação de entusiasmo e de negligência, em partes iguais e igualmente precipitados leva a que ciclicamente se reinvente, e festivamente, a roda em Psicologia e em Ciências Cognitivas e sempre em detrimento de uma desejável comutatividade da investigação psicológica.

É como Mr. Jourdain, uma personagem da peça de Moliére, o Burguês Fidalgo, que ao ser informado que o discurso pode ser classificado em prosa ou em poesia, descobriu, encantado, que tinha sem saber, falado em prosa toda a sua vida. O falar-se prosa sem saber é um perigo óbvio para o desenvolvimento da Ciência Psicológica e, em particular, da Psicologia Social. Mas sabendo ou não que se fala prosa, as perguntas sobre a cognição ou o cérebro humano não podem deixar de incluir questões que fazem inevitavelmente parte do objeto de estudo da Psicologia Social.

E é essa uma enorme oportunidade para a Psicologia Social e particularmente para a abordagem da Cognição Social que nasceu no seu seio. Assim, a Psicologia Social e a Cognição Social podem e devem servir de charneira para a combinação reflexiva, não só dos vários saberes da Ciência Psicológica, como até das várias ciências que compõem as Ciências Cognitivas.

Assim, não é que não se possa pensar em robótica social, economia comportamental ou neurociência sócio-afectiva sem incluir os avanços da Cognição Social e da Psicologia Social, mas só se for com muito menos acuidade e muito menor profundidade.